novembro 21, 2006

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eu me lembro dele, era aquele tipo de cara que você tem que olhar duas vezes. calado, distante, as palavras saiam pelos olhos. e aquele olhar, ah, mas que olhar, perdi o fôlego e qualquer outra coisa que pensava que tinha. levava-me a um lugar diferente de todo o resto. abria a boca e saiam aqueles erres cheio de explicações e alucinações realistas. o frio percorrendo os ânimos. olhares furtivos e sorrisos nervosos. uma coisa quase automática. um delicioso vício corroendo os neurônios, despertando anseios.
olhos pretos, cabelos pretos e mãos de desenhista.
N.

4 AM

Vi o peixinho boiar na privada. Boiar e rodar. Mamãe dizia que não prestava. Dizia que morto não se deve olhar, deve deixar lá boiando e rodando, o dourado reluzindo nas paredes, saindo pela minha boca, pelos meus olhos. Lembro tão bem daquele dourado, era vivo, vivo e eu queria pegar, mas não pode colocar a mão, é sujo. Sujo, sujo, dizia. E o peixinho alisava-me o rosto e dizia pra fechar os olhos e tampar o ouvido. Não chora, não chora, vai passar, não olha, não sente. E o sulco formando na pele, pele vermelha igual a do peixinho. Não chora, não chora, vai passar, não chora. O peixinho rodando, rodando até sumir com a água, não chora, não chora criança, não sente.


N.

julho 14, 2006

Capítulo 2



Acordou daquele momento e percebeu que já não o necessitava como antes, tudo aquilo pareceu uma grande piada, e como se começasse a fazer algum sentido lógico na sua cabeça começou a gargalhar desesperadamente esparramada no chão lembrando de todos os momentos trágicos e apaixonantes. Era como se tivesse sete anos de novo e tudo era desgraçosamente hilário e insignificante. Não tinha sido a noite da sua vida, e sim mais uma noite agradável, nada de mais. E por mais que já esperasse, aquilo lhe pareceu mais certo do que deveria ser, tudo se encaixou perfeitamente e o filme acabou com todos sorrindo para a câmera na última cena.
Calçou suas botas acolchoadas, desceu as escadas e respirou o frio movimento da cidade. sabia que naquele momento estava viva e isso valia mais do que qualquer coisa.
N.

julho 10, 2006

Capítulo 1


Fumou seu último cigarro observando a fumaça azulada subir sinuosa rodopiando pelo ar brincando com suas formas até finalmente fundir-se na morbidez escura do teto, seu corpo flutuava deslizando entre os fio de fumaça morna vindo do cinzeiro, uma voz rouca gritava palavras disformes em algum lugar da sala fazendo-a ecoar desesperadamente estremecendo seu corpo a cada nota. sua vida duraria enquanto aquela música durasse, infinitas vezes tocando e retocando a mesma letra, o mesmo tempo, o mesmo som, a mesma deformidade desesperadora sugando sua consistência como uma criança faminta suga a vida da mãe.
Abriu os olhos e olhou pelo vidro embaçado da janela, a rua brilhava melancolicamente à luz amarelada dos postes e uma densa nuvem pairava no ar estufando as janelas daquele segundo andar. eram três da manhã e fazia oito graus.
N.

julho 03, 2006

"Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Teu paletó enlaça o meu vestido
E o teu sapato inda pisa no meu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Meus seios inda estão nas tuas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás me fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir."


Tom Jobim